top of page
Buscar

ESPANADOR DAS COISAS

jjuncal10

RIBAMAR VIEGAS

ENGENHEIRO DE PRODUÇÃO, TÉCNICO EM PONTES

E ESTRADAS, INSTRUTOR DE DIREÇÃO DEFENSIVA

E CONDUÇÃO, ESCRITOR.


A baronesa Matilde de Orleans era uma curiosa de carteirinha. A fidalga não se contentava só em ver para crer. Tinha que pegar, provar, experimentar...

Espanador das Coisas era o apelido do bigodudo português Antônio Lisboa, espécie de adido do Consulado do seu país. O excêntrico lusitano era chegadíssimo a uma Casa de Pensão. De lá, o devasso apelido. Apesar de tê-lo como amigo, o barão Di Vergueiros − esposo de Matilde − nunca quis Espanador das Coisas no Solar das Lusíadas, onde morava. Temia pela curiosidade da baronesa para com o significado da depravada alcunha. Já pensou se ela não se contentar só em ver? ... Melhor não arriscar.

De partida para uma missão política, quando passaria um mês longe do Solar das Lusíadas, o barão Di Vergueiros fazia recomendações aos seus colaboradores, quando o seu fiel mordomo Jarbas chegou com a indesejável notícia:

− Senhor, o seu amigo, o português Antônio Lisboa, está aí para desejar-vos boa viagem.

─ Aí onde? ─ quis logo saber o barão.

− No caramanchão conversando com a baronesa.

─ Não! ... Ele não pode! ... – Já lhe falei! ... ─ Não o quero na minha morada! E, sem perceber a aproximação da baronesa acompanhada de Antônio Lisboa, redobrou a recomendação ao mordomo:

− Por hipótese alguma, vosmecê deixe a baronesa a sós com ele!!

─ Pode viajar tranquilo, senhor barão! – garantiu o serviçal, curvando-se para anunciar a presença da baronesa.

A fidalga, curiosíssima, ao ouvir tal recomendação, nem esperou as visitas saírem para perguntar de quem se tratava:

─ Ele quem? ... de quem o barão está falando? ...

─ De um animal... Mas não creio que a baronesa queira aproximar-se de um animal indócil! ... Bom dia, senhor Lisboa! Seja bem-vindo! ─ cumprimentou o barão.

─ Bom dia, senhor barão! Venho desejar-vos boa viagem e colocar-me à disposição para qualquer emergência na sua ausência... Nisso surgiu o comerciante libanês Mamud Abdala, vizinho do barão e íntimo do português Antônio Lisboa, saudando a todos:

─ Bom dia, senhor barão, e boa viagem! ... Senhora baronesa, meus respeitos! ... e, dirigindo-se ao português, madrugou hoje, Espanador das Coisas? ...

Todos responderam aos cumprimentos do comerciante. Antônio Lisboa limitou-se a esclarecer:

─ Não! ...dormi em casa! ... Acordei há pouco.

Era tudo que o barão Di Vergueiros temia. Ele embarcou um tanto ansioso com o aceno tímido da baronesa que parecia impressionada com o vasto bigode de Espanador das Coisas..., mas confiante na fidelidade, presteza e criatividade do seu mordomo.

O português foi o último a despedir-se da baronesa, prometendo voltar à noite, para um chá.

No ato, Matilde enquadrou o mordomo para saciar sua aguçada curiosidade:

─ Jarbas, por que “Espanador das Coisas”?... E que bicho é esse que o barão não quer que eu chegue perto? ...

─ “Espanador”, creio numa referência pejorativa ao vasto bigode do senhor Antônio Lisboa... “das Coisas”, não faço a menor ideia... Quanto ao bicho, trata-se de Rex. Um cachorro contratado para pastorar o quintal enquanto o barão estiver fora – concluiu o mordomo.

─ O senhor Lisboa prometeu-me voltar à noite e, com certeza, teremos o tempo que for preciso para eu saber o porquê de “das Coisas”... Nunca estive tão curiosa. E quanto ao cão, à tarde quero vê-lo, apalpá-lo! ... – garantiu a fidalga.

O mordomo sentiu que tinha que ser rápido e, num piscar de olhos, trouxe de sua casa para o quintal do Solar o seu vira-lata Pretinho, que detestava ser chamado de Rex.

Por volta das 4h da tarde, a baronesa foi para o quintal, estalou os dedos, e o vira-lata aproximou-se sem balançar o rabo. A baronesa alisou a cabeça do bicho, que expôs os dentes. Em seguida, chamou-o de Rex. Não deu outa: o cachorro mordeu-a no braço, causando um profundo corte. Foi aquele corre, corre. Imediatamente a baronesa foi transportada para o Hospital Luso-Brasileiro, onde foi feita a sutura do corte, e por lá ela teve que ficar no soro antirrábico até o final do tratamento.

À noite, quando Espanador das Coisas chegou ao Solar das Lusíadas com um ramalhete de flores, o mordomo o recebeu e o despachou alegando que a baronesa, por precaução, fora internada num Hospital Colônia com suspeita de tuberculose. Antônio Lisboa disse lamentar e retirou-se. Enquanto Jarbas comemorava o seu grande feito − ter despejado um balde de água fria na brasa do bigode de Espanador das Coisas − o português caminhava pensando na perspicácia daquele mordomo para com a integridade da patroa. E para não perder a noite, ele foi para um prostíbulo levando o ramalhete de flores.

Passados quinze dias, a baronesa retirou os pontos do braço e quis permanecer no hospital, sentia-se ainda muito traumatizada. Com mais uns dias, o barão chegou e soube do corrido com a esposa. De imediato, culpou o grave incidente ao mordomo. Quem o mandou botar cachorro brabo no quintal, sabendo que a baronesa não ia contentar-se só em vê-lo? ... Possesso, pensou alto: vou demitir o Jarbas agora mesmo e mandá-lo para a prisão! E partiu para exigir do mordomo uma explicação sobre o ocorrido. O fiel serviçal contou o sucedido sem saltear uma vírgula. Inclusive como conseguiu afastar para sempre do Solar das Lusíadas o inconveniente português Espanador das Coisas. O barão esfriou, refletiu, coçou a cabeça e não somente aprovou a atitude do seu mordomo, como o recompensou com alguns contos de réis e uma bonita casinha para Rex, ou melhor, Pretinho. E proclamou:

─ Prefiro ver minha curiosa Matilde mordida por um vira-lata a vê-la espanada pelo bigode nojento do português Antônio Lisboa.

O barão Di Vergueiros foi recebido com pompas no Hospital Luso-Brasileiro e informado de que, naquele momento, estava terminantemente proibido qualquer tipo de visita para a baronesa Matilde de Orleans, que se fazia acompanhar do diretor do hospital, e estava de porta trancada.

− Que diretor é esse? – Inquietou-se o barão Di Vergueiros, cheio de pressentimento.

− O senhor Antônio Lisboa. Ele é diretor deste hospital e visita a baronesa todos os dias.

O barão foi à loucura:

− Espanador das Coisas???

A recepcionista, deixando escapar um sorriso irônico, confirmou:

─ O próprio! ...





56 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page