
Delegado de polícia do estado do Espírito Santo-aposentado; ex-professor de Direito Penal e Processual Penal, pelas Faculdades de direito do Centro Universitário do Espírito Santo: graduação e pós-graduação, anos 1998 a 2004:
Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Novo Milênio, em Vila Velha/ES; professor de Direito Penal e Processo Penal, Criminologia, Execução Penal- Faculdade São Geraldo, posteriormente Faculdade Multivix em Cariacica/ES.
PARTE 2
LEGALIDADE
Nos exatos termos do art. 5º, II da Constituição da República Federativa do Brasil, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Desse princípio da legalidade ampla decorrem algumas proibições e mandamentos no âmbito do direito material originando os delitos comissivos e omissivos, respectivamente. A violação desse comando constitucional conduzirá o seu autor à instância da tipicidade penal, visto que os delitos são estruturados pela legalidade estrita, definindo crimes e cominando penas. Logo, a legalidade ampla alberga a legalidade estrita, esta mencionada às vezes, impropriamente, a nosso ver, como reserva legal, de sorte a ceder assento à tipicidade formal.
Nesse caso, a legalidade estrita² seria aquela encarregada de definir as condutas intoleráveis e consideradas nocivas ao convívio social, em determinado momento cultural, econômico, religioso, histórico e político, a depender dos instrumentos convencionais e grupos sociais hegemônicos de cada época e lugar.
2 Art. 5º, XXXIX, CF e Art. 1º, CP – “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena, sem prévia definição legal”.
Reserva legal, por sua vez, relaciona-se ao permissivo constitucional conferido com exclusividade ao legislador ordinário (art. 22, I, CF) a função de tarifar as condutas maléficas ou lesivas aos bens jurídicos imprescindíveis aos interesses do corpo coletivo. Então, legalidade e reserva legal não significam exatamente a mesma coisa, embora sejam oriundas da mesma fonte e com laços fortes que as unem.
Do mesmo modo, o princípio da anterioridade da lei penal figura como garantia constitucional extraída do princípio da legalidade, não permitindo que seja típica a conduta de alguém que a praticou antes da entrada em vigor da lei que a definiu como crime ou contravenção penal. Uma lei que entra em vigor no dia 1º de janeiro de determinado ano, só tem força normativa a incriminar condutas perpetradas desse dia em diante, ou seja, nos primeiros momentos daquela data. Quem praticou o fato às 23h59 do dia 31 de dezembro pretérito, não pode ser punido porque a lei incriminadora de tal conduta ainda não estava em vigor. Então, por um minuto e alguns segundos o agente escapa de possível sanção face a inexistência do comando legal no momento da realização da conduta.
Há uma razão muito forte para essa válvula de escape: o tempo do crime [3]. Considera-se praticado o crime no momento da conduta do agente, ainda que o resultado se produza “a posteriori”. Quanto à determinação do tempo do crime, o direito penal adotou a teoria da atividade (ação ou omissão) e não a do resultado. Se a ação ou omissão do sujeito foi realizada numa determinada data, ainda que no último minuto, aquele dia será considerado por inteiro, a teor dos art. 10 e 11 do CP [4]. Tais dispositivos legais desprezam as frações de dia e computa-se no prazo o dia do começo, bem assim, desprezam-se as frações da moeda nacional corrente, no caso, os centavos de real, quanto à aplicação da pena pecuniária.
3 Art. 4º, CP – “Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”.
4 Art. 10, CP – “O dia do começo inclui-se no computo do prazo. Contam-se os dias, os meses e os anos pelo calendário comum”. No calendário comum ou gregoriano, os meses são contados, não pelo número de dias, mas de um certo dia do mês à véspera do dia idêntico do mês seguinte.
Art. 11, CP – “Desprezam-se, nas penas privativas de liberdade e nas restritivas de direitos, as frações de dia, e, na pena de multa, as frações de cruzeiro” (primitiva redação do código). Atualmente fala-se em frações de real, que é nossa moeda corrente nacional.
Tal princípio, exerce forte influência na resolução do caso concreto, em determinadas situações fáticas, verbi gratia, quando os atos executórios do crime são praticados num determinado dia e o resultado material se produz no dia seguinte, ainda que em datas separadas por minutos. Cite-se como exemplo, a conduta agressiva à pessoa, com animus necandi, realizada as 23h50 de um dia e o resultado pretendido, morte, se configura as 00h10 do dia seguinte. Apenas vinte minutos, e poderia ser menos: dois minutos, por exemplo, já bastavam para destacar o lapso temporal entre conduta e resultado. No caso, dois dias seriam levados em consideração nessa ocorrência: a conduta praticada num dia e o resultado, no dia seguinte, sabendo-se que a data do crime, sem dúvida seria o dia anterior, as 23h50. De modo que, se o sujeito ativo do delito, ainda menor de 18 anos na data da agressão, e viesse a completar seu 18º aniversário no dia da produção do resultado, isto é, 20 minutos, ou apenas dois minutos depois da conduta, esse sujeito não poderia responder pelo crime sob a égide do direito penal, e sim, pela legislação especial regente da matéria menorista, estatuto da criança e do adolescente. Por óbvio, imprescindível o registro ou a instrumentalização da prova referente aos horários desses eventos. “Porque alegar e não provar é o mesmo que não alegar”.
Nesse mesmo contexto, suponha-se que no dia da produção do resultado morte, entre em vigor uma lei penal mais gravosa ao agente, o qual era penalmente imputável na data da conduta agressiva. Ela não poderá ser aplicada ao caso concreto porque o crime foi cometido no dia anterior, logo, antes de sua entrada em vigor. Se a lei nova fosse mais benéfica, teria aplicação em face do princípio da “novatio legis in mellius”, prevista pelo parágrafo único do artigo 2º, do CP que determina a aplicação de lei posterior mais favorável ao réu.
Em se tratando de garantias fundamentais na esfera do direito penal, dentre os diversos princípios e institutos jurídicos, o de maior grandeza é o da legalidade estrita. Com assento na Constituição Federal, assim se manifesta: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (art. 5º, XXXIX) e no Código Penal (art. 1º) “não há crime, sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. As redações se equivalem.
Não se pode olvidar a clareza constitucional quanto à competência exclusiva da lei, para definir crimes e cominar penas. O poder constituinte originário não estendeu essa tarefa a nenhum outro instrumento legislativo, nem a outra instituição pública estranha ao legislador ordinário. Por isso mesmo, qualquer tentativa de tipificar conduta humana com ameaça de sanção, com a devida vênia, não passa de intromissão indevida e inconstitucional, fadada a não produzir os efeitos jurídicos na esfera penal, à vista de nulidade absoluta do ato incriminador, posto que levado a efeito por autoridade ou instituição absolutamente incompetente para legislar em matéria penal. Há de se considerar um nada jurídico. Determinar, ainda que por decisão proferida em ações constitucionais ou mandamentais, a aplicação de uma lei em vigor, a fatos atípicos como provocação ao legislador ordinário em face de sua morosidade ou omissão, não nos parece o melhor caminho, pois, resulta em tipificar comportamento socialmente desajustado e, convenhamos, inaceitável, tornando-o criminoso sem a existência de lei apta a tal desiderato. Determinar a aplicação de uma lei que não trata do tema questionado, até que o legislador incrimine tal conduta, significa coagir outro poder a cumprir com seus deveres funcionais, numa interferência explícita e inadmissível num sistema republicano e democrático.
A harmonia entre os poderes, melhor diria, entre as variações do poder, não autoriza tamanha intromissão coativa. Se o legislador quisesse incriminar a homofobia ou transfobia, já o teria feito, mormente quando alterou o artigo 140, do código penal para incluir a figura da “injúria racial ou preconceituosa”, punindo com maior severidade do que a injúria real.[5]
5 Art. 140, caput, CP – “Injuriar alguém, ofendendo - lhe a dignidade ou o decoro. Pena. Detenção, de um a seis meses, ou multa”. O caput do dispositivo legal, define a denominada injúria simples. § 1º o juiz, pode deixar de aplicar a pena em duas situações: I – quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria; II – no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria. Caso típico de norma penal permissiva. Injúria real - §2º - “Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes: pena – detenção de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência”. Injúria preconceituosa ou discriminatória - §3º. “Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência (redação dada pelas leis 9.459/1997 e 10.741/2003): pena- reclusão, de um a três anos, e multa”.
O legislador ao adicionar o § 3º ao artigo 140, criou um subtipo penal ou tipo penal derivado, qualificando o delito “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência” (redação das leis 9.459/1997 e 10.741/2003). Não incluiu nesse rol as vítimas de homofobia ou transfobia. Perdeu a oportunidade de incriminar essa gravíssima ofensa ao ser humano, quer seja o ataque dirigido a uma pessoa determinada, quer seja propalado de forma coletiva, ofendendo pessoas indeterminadas. Ninguém tem o direito de lesar bens jurídicos de terceiros, direta ou indiretamente, individual ou coletivamente. Há de prevalecer a tolerância e o respeito à dignidade da pessoa humana.
O que se questiona, neste caso é a usurpação do poder de legislar, e mais, equiparar a orientação sexual da pessoa humana a raça. Se é orientação, não pode ser raça [6], porque esta refere-se à linhagem, cujos caracteres biológicos são constantes e passam de uma geração a outra, numa relação de ascendência e descendência. A orientação sexual, cujo termo veio substituir o de “opção sexual”, “está relacionado com as diferentes formas de atração afetiva e sexual de cada um”, segundo preconiza a Professora de Biologia e Doutora em Gestão do Conhecimento, Juliana Diana.
Sem a pretensão de esgotar o tema, nem de tecer críticas a quaisquer instituições ou órgãos estatais é forçoso reconhecer e comentar que a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 22, I conferiu privativamente à União, a competência para legislar sobre direito penal. E o órgão próprio e dotado de outorga exclusiva da carta política é o Poder Legislativo (Congresso Nacional). Na hipótese de omissão do poder legiferante, cabe o mandado de injunção ou ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão, conforme o caso, de modo a provocar a atuação do poder legislativo [6] (art.103, §2º, CF).
6 Art. 103, §2º- “Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.
Ao Poder Judiciário, não coube a função constitucional de legislar, em especial, em matéria penal, sobretudo incriminar condutas não descritas como infrações penais, ao argumento de omissão do poder legiferante competente. Considerar tal ou qual conduta como crime, por mais reprovável socialmente que seja, fere a constituição da república e explicita verdadeira usurpação das atividades de outro poder.
Somente a lei penal, com toda a sua liturgia, obedecidas as respectivas fases de sua elaboração nos limites do devido processo legislativo constitucional, poderá incriminar condutas e cominar-lhes as penas qualitativas e quantitativamente suficientes para reprovação e prevenção do crime.
E não basta a mera publicação da lei, também exigível que ela entre em vigor. O período denominado vacatio legis, isto é, aquele decorrido entre a publicação da lei e sua entrada em vigor, não pode ser considerado para efeito de incriminar conduta, posto que o texto legal ainda não havia entrado em vigor.
Nessa perspectiva, nenhuma conduta humana desajustada ao conceito definidor do crime poderá ser valorada como tal, incabível, portanto, qualquer forma de reprimenda de natureza penal. A tipicidade funciona como corolário da legalidade, vez que somente a [7] lei em sentido estrito possui força normativa para definir crime ou contravenção penal e cominar-lhes as respectivas sanções. E mais, a eficácia da lei penal no tempo não permite que ela tenha aplicação retroativa, salvo em benefício do réu.
7 Constituição Federal da República Federativa do Brasil, art. 22, I – “Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”.
O art. 5º, XL, da CF assim determina: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Nessa trilha, o art. 2º, caput do CP, exerce função permissiva à conduta do agente, em face de lei posterior que deixa de considerar crime, fato anteriormente definido como tal. Trata-se de caso típico de “abolitio criminis”. O parágrafo único, por sua vez, textualiza que “a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”. É o caso “novatio legis in mellius”.






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