
JOSÉ GERALDO GOMES
Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV (Faculdade de Direito de Vitória - 2011); Pós-graduação lato senso em Direito Penal e Direito Processual Penal, Direito Civil e Direito Processual Civil – Fundação Gildásio Amado - Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC). Graduação em Direito – Faculdade de Direito de Colatina/ES (atual Centro Universitário do Espírito Santo – 1.990)
A doutrina reconhece a infração penal sob o aspecto da violação das normas penais, classificando-a pelo critério bipartido ou dicotômico, em: crime ou delito e contravenção penal. A lei não conceitua crime nem contravenção, em seu aspecto estruturante, salvo as regras do art. 1º da Lei 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal) que timidamente cuidou de uma classificação legal do fato, e de forma bem superficial, agora ultrapassada, sobretudo em comparação ao art. 28 da Lei de Droga (Lei 11.343/2006) que define a conduta do porte ou posse de droga para consumo pessoal, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, sancionada com advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo. A resposta penal não se enquadra em nenhuma das hipóteses da Lei de Introdução ao Código Penal, razão pela qual é considerado pelo saudoso Prof. Luiz Flávio Gomes como infração penal sui generis.
Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente penas de prisão simples, ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.
Essa classificação não oferece supedâneo apto ao estudo doutrinário referente à estruturação dos tipos penais, valendo-se os estudiosos do Direito, das diversas teorias acerca do conceito de crime. Duas das quais, de maior relevância. A primeira defendida por Damásio Evangelista de Jesus, Júlio Fabbrini Mirabete, Fernando Capez, Celso Delmanto, René Ariel Dotti, Flávio Augusto Monteiro de Barros, Cleber Masson, Renato Nalini Fabbrini, dentre outros defendem a teoria dualista ou dicotômica, por entender que o crime deva ser visto como um fato típico e antijurídico, ou ilícito. A culpabilidade funciona como pressuposto de imposição de pena.
A segunda, defendida por autores como, Aníbal Bruno, Cesar Roberto Bitencourt, Edgard Magalhães Noronha, Francisco de Assis Toledo, Guilherme de Souza Nucci, Heleno Fragoso, Paulo José da Costa Junior, Rogério Greco, dentre outros adotam a teoria tripartida ou tricotômica, pela qual o crime é composto por três requisitos: fato típico; ilicitude e culpabilidade.
Por fim, outros entendem que além dos três já mencionados, devessem acrescentar um quarto requisito, isto é, a punibilidade, entendida como a possibilidade jurídica de punir. Corolário do jus puniendi estatal, diante da violação da norma penal incriminadora, após apurada autoria e materialidade, cabe ao julgador verificar sobre a existência ou não de alguma causa excludente da ilicitude ou da tipicidade, e em assim sendo, absolverá o acusado pela conclusão lógica de que atuara em conformidade com o ordenamento jurídico.
Se ausentes essas causas, passa-se a apreciação da possibilidade jurídica de punir e, neste caso, efetiva-se a reprimenda em conformidade com as prescrições legais. Verifica-se desde já, que punibilidade caminha associada à culpabilidade, figurando como pressuposto de pena.
Vale destacar que a punibilidade é mais ampla na órbita repressiva penal, tendo em consideração a existência de escusas absolutória decorrentes de questões de interesse da política criminal a desautorizar aplicação de pena em determinadas situações, em que pese ser o acusado culpável. No caso, a impunibilidade tem por objetivo a preservação dos laços familiares e o bem comum dos seus membros. Isso fica claro na hipótese do art. 181, CP que isenta de pena o autor de crime contra o patrimônio, sem violência ou grave ameaça à pessoa, em prejuízo do cônjuge na constância do casamente, de ascendente ou descendente, desde que o ofendido não seja maior de 60 anos de idade. Ainda no delito de favorecimento pessoal quando o agente, no afã de proteger autor de crime, subtrai a ação da autoridade pública em desfavor de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão, nos exatos termos do (1) art. 348, § 2º, CP.
(1) O favorecimento pessoal em benefício de agente com integrante das relações familiares, inserto no artigo 348, §2°, do Código Penal, é uma circunstância comumente relacionada, pela doutrina dominante, à punibilidade, na modalidade escusa absolutória. Segundo o mencionado dispositivo, “se quem presta o auxílio é ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do criminoso, fica isento de pena”. Há quem defenda a tese de que se trate de inculpabilidade inerente à inexigibilidade de conduta diversa supralegal.
Filiamo-nos à primeira posição, com o respeito devido aos que pensam o contrário, por entender que se existe culpabilidade esta condição pertence ao sujeito praticante da conduta, e não ao fato em si. A culpabilidade incide sobre o agente e não sobre o delito. O crime não é culpável e nem culpado de conduta alguma. Só será culpável o autor ou partícipe da infração penal, em decorrência de sua condição ou circunstância de caráter pessoal, que o habilite a receber a reprimenda, caso reúna as condições necessárias para tal.
Dentro dessa linha de raciocínio e em conformidade com a teoria finalista da ação, desenvolvida por Hans Welzel na década de 1930 que extraiu da culpabilidade o dolo e a culpa, removendo esses elementos subjetivos e normativos para a conduta, entendemos, como Damásio e outros, que culpável é o sujeito mentalmente são e desenvolvido, capaz de querer e entender.
Entender a ilicitude da sua conduta e livre para escolher entre delinquir ou abster-se dessa prática proibida por lei. Quem desconhece a ilicitude da conduta, movido por erro de proibição plenamente justificado pelas circunstâncias e não tinha como agir de forma diferente, não deixa, por isso mesmo, de cometer crime, apenas o pratica sem saber da ilicitude de seu comportamento. Por essa razão, se o erro for invencível, inevitável ou escusável, o seu autor será isento de pena.
Do mesmo modo, quem pratica conduta típica e ilícita premido pela coação moral irresistível, ou em estrito cumprimento à ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico, resta isento de pena, respondendo somente o autor da coação ou da ordem, conforme disposições do art. 22 do CP. Isso em nada afeta a estrutura do crime, senão, condição peculiar do indivíduo.
Se a ausência de culpabilidade de um dos autores expurgasse algum requisito do crime, este deixaria de existir, e os demais concorrentes estariam livres porque não teriam cometido crime algum. Essa mesma situação é válida para o agente inimputável. A imputabilidade é outro requisito essencial da culpabilidade. A inimputabilidade exclui a culpabilidade do agente.
Se inimputável, ainda que pratique o mais grave e bárbaro dos delitos, não sofrerá a sanção penal porque tal circunstância produz uma blindagem para reconhecer a isenção de pena. (2) Se menor de 18 anos, não será alcançado pelo direito penal, mas submetido às regras da legislação especial, no caso, a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) com as medidas socioeducativas cabíveis à espécie, pela prática de “ato infracional”, e pelo prazo determinado na sentença dentro dos limites legais.
(2) Art. 27, CP. Os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. Lei 8.069/90 – art. 1º - “Esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. Art. 2º - “Considera-se criança, para os efeitos desta lei, a pessoa até 12 anos de idade incompletos e, adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade. ” Art. 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Nem por isso o menor de 18 anos, desprovido de culpabilidade por ser inimputável, deixaria de cometer crime. Ele pratica ou participa de ação delituosa, mas não recebe pena, e sim, medidas socioeducativas. Para aqueles que insistem em dizer que o menor de 18 anos não pratica crime, vejam o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/90, em seu artigo 103. “Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”. Tanto que a resposta adequada ao adolescente autor de ato infracional, a quem se denomina de “adolescente em conflito com a lei”, encontra respaldo no artigo 123 do referido diploma legal, estabelecendo a internação.
Tal medida é similar à prisão, com as adequações pertinentes à condição do agente. Preceitua o dispositivo em foco que “a internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração”. Na realidade, um crime para o qual não há pena na esfera do direito repressivo, mas uma espécie de medida corretiva e preventiva em outro ramo do ordenamento jurídico.
Além da inimputabilidade pela menoridade penal, registrem-se outras duas espécies. A primeira decorrente de doença mental, ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, na forma do (3) art. 26, caput do CP. Para esses casos específicos, com similaridade na lei de droga, isento de pena o acusado, este será submetido à medida de segurança, detentiva ou restritiva, conforme a natureza da pena cominada ao delito praticado.
Nesse sentido, o art. 97, CP prescreve que “se o agente for inimputável”, diga-se, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado na forma do (3) art. 26, caput, “o juiz determinará sua internação. Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial”. De observar que nesta situação específica a medida de segurança decorre da prática de crime por parte de agente inculpável. A ausência de culpabilidade não afetou a estrutura do crime, apenas a espécie de resposta penal.
Além do mais, se a ausência de culpabilidade retirasse a qualidade criminosa da conduta, o doente mental inculpável, ou o menor de 18 anos de idade não cometeria crime, ainda que matasse, roubasse ou furtasse.
(3) Art. 26, caput, CP. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Além do mais, se a ausência de culpabilidade retirasse a qualidade criminosa da conduta, o doente mental inculpável, ou o menor de 18 anos de idade não cometeria crime, ainda que matasse, roubasse ou furtasse.
Logo, se qualquer desses agentes se apoderasse furtivamente de coisa alheia móvel, seja pela subtração violenta ou não, seja por outro meio ilícito, a pessoa poderia adquirir, onerosamente ou não, receber, guardar, ocultar, transportar coisa proveniente dessas fontes, que certamente não responderia pelo delito de receptação, (art. 180, CP) porque os bens materiais não seriam considerados produtos de crime porque sua procedência não seria criminosa. Entretanto, não é isso que estabelece o sistema penal vigente, visto que o (4) art. 180, § 4º, CP estabelece que a pena será aplicada ainda que desconhecido o autor do crime “pressuposto” ou isento de pena o seu autor.
(4) Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte. § 4º - A receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa. Basta observar que a culpabilidade passa por análise depois de certificada a materialidade delitiva ou prova da existência do crime e sua autoria ou a participação na infração penal. Na sequência, pesquisa-se sobre a existência ou não, de eventuais excludentes da ilicitude. A última pesquisa levada a cabo pelo juiz ao apreciar uma lide penal, gira em torno da “valoração paralela na esfera do profano”, isto é, verificação sobre sua culpabilidade, para em seguida realizar a dosimetria da pena, se cabível, como determinam os artigos 59 a 68 do CP.
Na fixação da pena-base, o juiz leva em consideração a culpabilidade do agente, para valorar, dentre as penas cominadas e nos limites legais, o quantum suficiente para reprovação e prevenção do crime, orbitando a teoria eclética ou mista da pena, em busca da dupla finalidade da resposta penal, isto é, retributiva e preventiva. Quanto ao crime, este já fora reconhecido como perpetrado. Fica claro que o nosso vigente Código Penal, com sua reforma da parte geral de 1984, aderiu à teoria finalista da ação, abandonando a ideia de culpabilidade como elemento estrutural do crime.
A terceira espécie de inimputabilidade penal refere-se à condição do agente em estado de embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, a teor do (5) art. 28, § 1º do Código Penal. Comprovado que o sujeito nestas condições veio a cometer um delito, estando inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, só lhe restaria a isenção de pena, sem qualquer outra medida penal punitiva. O crime teria existido; seu autor ou partícipe determinado. Mas a pena não é aplicável, justamente pela ausência de culpabilidade.
(5) Art. 28, § 1º - “É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”
Em termos de teoria do crime, e para ser fiel ao entendimento acima exposto, não poderia olvidar os requisitos genéricos do crime, à saber: fato típico e ilicitude.
O fato típico é composto pela conduta do agente, na forma dolosa ou culposa; positiva ou negativa (ação ou omissão). Essa conduta, em regra, produz um resultado, seja ele naturalístico ou material, seja jurídico ou normativo. O resultado material significa a transformação ou modificação do mundo exterior, ou seja, a alteração do aspecto físico do objeto material do delito. Objeto material do crime significa a pessoa ou a coisa, sobre a qual incide a conduta do agente. Já o resultado jurídico ou normativo compreende a violação do bem, valor ou interesse penalmente tutelado e violado pelo sujeito.
Entre a conduta e o resultado material ou naturalístico, situa-se o nexo causal ou relação de causalidade, o que significa o elo estabelecido entre causa e efeito. Nos delitos formais e nos de mera conduta, por não produzirem necessariamente resultado naturalístico para a sua consumação, por certo também não há que se falar em relação de causalidade, posto que a própria conduta do agente já se configura o resultado sob o aspecto normativo ou jurídico.
Cabe uma explicação, ainda que sucinta. Crimes formais são aqueles de consumação antecipada, isto é, a sua consumação não exige resultado material ou naturalístico. Ele pode ocorrer ou não. Se a conduta produzir esse resultado, não afetará quanto à sua consumação, e será considerado como crime exaurido. Citem-se como exemplos de crimes formais a corrupção ativa (6) (art. 333, CP) ou passiva (7) (art. 317, CP); concussão (8) (art. 316, CP) extorsão (9) (art. 158, CP), dentre outros. Em relação aos crimes de mera conduta, tais infrações não produzem resultado material, porque o tipo penal incriminador não faz alusão ao resultado, se conformando com o mero comportamento do agente. Nesse caso, o fato típico é composto apenas pela conduta e a tipicidade. O resultado produzido será meramente jurídico ou normativo. Ex. calúnia, injúria ou difamação e ameaça todos na modalidade verbal (art. 138; 139; 140 e 147, CP, respectivamente). O quarto componente do fato típico, e dos mais importantes, assim como a conduta, vem a tipicidade.
(6) Art. 333, CP – “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”. Pena – reclusão, de 02 a 12 anos, e multa. (7) Art. 317, CP – “Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. Pena- reclusão, de 02 a 12 anos, e multa. (8) Art. 316, CP - “Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida”. Pena – reclusão, de 02 a 08 anos, e multa. (9) Art. 158, CP – “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem, indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa”. Pena – reclusão, de 04 a 10 anos, e multa.
CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO ( ESPÉCIES DE TIPICIDADE)







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